O que é seu tá embrulhado com sardinha
e outras improbabilidades que eu diria se fosse coach motivacional
Era uma lojinha escondida numa viela apertada que cruzava a Via Vittorio Emanuele, em Palermo, na Sicilia. Eu estava voltando do mercado Ballarò, ainda me recuperando da confusão. O Mercato di Ballarò é a alma da capital da Sicília, e é uma zona. O caos reina absoluto: vendedores gritam em dialeto oferecendo sardinha, frituras, limão, queijo, esponja de banho, pistache e o que mais você imaginar. As poças de água suja não deixam você sair ilesa nem quando faz dança contemporânea. Nenhum legume tem o formato dos que você encontra nas prateleiras de supermercado, e é exatamente isso que faz tudo parecer mais gostoso.
Carregava umas beringelas tortas e uns tomates ainda sujos de terra na mochila quando vi, através de uma vitrine, o ateliê de um artista. A máquina de letterpress, as tintas mal fechadas acumulando no mezanino misturadas com pilhas de papéis e rolos de tecido, aquela zona criativa que dá vontade de ir lá fuçar cada pedacinho. O lugar cheirava a tinta e solvente.
Peixes, frutas e verduras faziam parte de uma padronagem que me era muito familiar, e estavam lá servindo como capas de cadernos, porta cacarecos e cartões postais. Fiquei apaixonada, mas só tinha o dinheiro contado para os meus legumes e saí pensando que num mundo paralelo eu seria aquela pessoa que abriu a loja. Fui tão emocionada que, na época, até escrevi um texto a respeito.
Durante os seis meses que vivi em Palermo, toda semana eu ia até a feira comprar due chili di sardine. O peixe era para os meus cães, que seguiam uma dieta preparada pela nutricionista deles, enquanto eu comia um tomate velho e 2 pedaços de queijo. Vi o peixeiro arrancar uma folha de papel estampado para embrulhar minhas sardinhas. Me senti numa série de comédia, olhando pra câmera em câmera lenta, incrédula, achando que era piada. As estampas da papelaria eram as mesmas que eu via toda semana, só que agora cobertas de água de peixe. Aquele artista não criava os desenhos; ele transformava as folhas de embrulho do mercado em arte.
Berlim, 2021
Um dos meus grandes amigos na capital alemã que chamo de casa é um italiano dono de um bar de vinhos que conheci meio por acidente. Certo dia, um amigo me chega depois de uma reunião com esse italiano me trazendo um presente. Dentro da embalagem, um caderno. Não qualquer caderno, mas exatamente aquele caderno que eu deixei de comprar em 2018, na lojinha de Palermo. Mais uma vez olhei para o roteirista da minha série e disse “cê tá de brincadeira né?”.
O artista era amigo-de-um-amigo-de-um-amigo, como bom telefone sem fio de novela. Em 2015, ele trouxe da Sicília um lote desses cadernos para Berlim, na expectativa de vender ou fazer algum projeto com eles. Nada deu certo, mas um deles acabou passando de mão em mão até cair nas minhas mãos. De novo. Foi como abrir uma gaveta cheia de lembranças que eu achava que tinha jogado a chave fora e mudado de país.
Voltei para 2018. Para o cheiro de tinta. Para as prateleiras brancas e a memória dos olhos das pobres sardinhas embranquecendo conforme eu cozinhava elas com beringelas tortas. Voltei para aquela Debora que ficou fascinada com uma ideia tão simples. Que passou meses sorrindo quando via arte no papel molhado de sardinhas.
Esse caderno ainda está na minha estante. Não só porque é bonito – embora seja –, mas porque ele me lembra de uma vida que eu ainda queria muito viver. Me lembra que é possível tirar inspiração até no papel usado para não deixar a água dos peixes escorrerem pela mochila. Que às vezes a frase “o que é seu tá guardado” não é só papo de coach de motivação, e talvez ela tenha uma pontinha de verdade.
Tem vezes que a vida conspira demais contra o meu ceticismo.
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Escrevi essa história há três anos e nunca deixei essa memória de lado. Eu gosto de revisitar histórias e reescreve-las com o que eu sei hoje – não só porque sou a crítica #1 do que escrevo, mas também porque é gostoso relembrar (e reinventar) detalhes. Até mandei numa newsletter antiga que eu tinha só para assinantes. Quando lembrei da fase complicada que vivi na Itália (link abaixo), essa história voltou para minha cabeça e ainda não saiu. Ter ela aqui agora, repensada e disponível onlie, dá um novo significado a tudo. Espero que tenha gostado :)
Acho que ela sempre conspirou. O que sinto ter mudado esse ano, é que aprendi a manter a esperança mesmo quando o ceticismo bateu muito forte. Adorei o texto. Reforçou meu exercício de esperançar. Obrigada
muito bom receber suas histórias por email ♥️ sdds