Prossima fermata: Bolzano / Bozen, a voz automática do trem da OBB repete no alto falante. Estou sentada no meu trem em direção a Berlim, onde eu tenho uma casa que eu chamo de “base” depois do meu terceiro mês na Itália em 2024. Esse ano posso dizer que eu finalmente fiz as pazes com esse país.
Em 2018 eu escolhi a Sicília para fazer uma “reconstrução profissional”. O objetivo era reforçar minha carreira como freelancer. De brinde, ganhei dores articulares por todo o corpo e infinitas visitas ao médico. Palermo era uma cidade barata para padrões europeus, sem grandes distrações, onde eu trabalharia bastante para refazer minha vida financeira depois de separar meus negócios do meu ex namorado e ex sócio. A ideia era sair com a vida profissional novamente nos eixos, alguns clientes internacionais e um pouco de experiência com a língua italiana.
Em Outubro do mesmo ano saí da Sicília com 10kg a menos, uma doença auto imune não diagnosticada e uma vida financeira levemente mais estável, sentindo o alívio de quem sai de uma prisão onde eu mesma me meti. Após diversas mudanças de apartamento, muita solidão, insegurança financeira, uma péssima alimentação e uma saúde mental de centavos, a Itália sumiu completamente do meu radar.

Seis anos depois, no Brasil, fui uma das centenas de paulistanos que foram aproveitar a vibe interiorana de Belo Horizonte com um carnaval que começa às 8am e tem pausas estratégicas para comer um pãozin de queijo. Na quarta feira de cinzas, tomando café da manha, estava batendo papo com um amigo italiano que estava hospedado no mesmo hotel que eu.
Mencionei sem pretensão alguma que sempre sonhei em conhecer Roma, mas que era uma cidade muito cara. Até que ele me solta: meu quarto vai estar vazio em Abril, quer ficar lá? A Itália sumiu do meu radar por anos, mas Roma era um sonho antigo. As datas batiam exatamente com os meus planos, e corri comprar as passagens. Na esperança de compensar pelo “tempo perdido” lá em 2018, contratei um professor particular para fazer um intensivão de italiano.
Foi assim que, um mês e meio depois, eu desembarcava em Roma para uma estadia linda que me trouxe uma nova amiga muito querida, muita experiência com uma língua nova e um vício por cacio e pepe, macarrão clássico da região preparado com queijo pecorino e pimenta preta.
Saindo de lá, fiz uma viagem linda pela região da Toscana e comemorei meus 34 anos comendo queijos e tomando vinho nesse cenário aqui, na maior vibe aposentadoria dos meus sonhos, antes de voltar para a Alemanha.
A próxima visita do ano foi outro sonho antigo, Veneza, para conhecer a cidade (belíssima, aliás) e visitar a Bienal de Arte, duas experiências que eu sempre quis viver. Em seguida, passamos duas semanas com a família do meu parceiro hospedados em trullos tradicionais na Puglia, onde eu acabei caindo enquanto corria atrás da Lisa, minha cachorra, e quebrando meu primeiro osso da vida, uma falange do pé. Também passei alguns dias (quase forçados, já que não podia viajar) em Napoli, sem realmente poder reclamar de comer pizza em literalmente todas as refeições. A caminho de Napoli, fiz algo que nunca sonhei ser possível até começar a aprender italiano nesse ano: conheci a cidadezinha onde meu pai nasceu.
Minha história com a Itália começou antes de mim.
A minha história nesse país começa, na verdade, exatamente em Castellabate. Foi nessa cidade na região de Campania que meu pai e meus avós moraram antes de mudarem de vez para o Brasil. Minha família foi embora dali depois do fim da Segunda Guerra Mundial, sem pretensão de retorno. Tudo que eu sabia de Castellabate através da minha vó é que lá não tinha mais nada para eles. Apesar do meu avô ter vivido mais de 30 anos ali, posso contar nos dedos de uma mão as memórias boas que ouvi sobre a região.
Uma semana depois de ter visitado a cidade, eu sigo um pouco desacreditada que ela é real, e que agora eu tenho as minhas próprias histórias para contar de lá também. Castellabate foi a primeira cidade que eu ouvi falar na vida, quando eu nem sabia direito o conceito de “outro país”. Conheci parentes, esgotei todo o italiano que aprendi nesse ano, ouvi muito sobre meu avô (que faleceu antes de eu nascer), vi a casa que meu pai nasceu, onde meus avós cresceram, onde meu bisavô foi enterrado. Tomei cafézinho e limoncello com parentes que eu sequer sabia que existiam… até agora. E que me receberam realmente como alguém da família – que é estranho, mas é verdade. Mas isso vai ficar para um texto à parte.
Parabéns, você passou de 2018.
Esse ano eu sinto que finalmente consegui processar e superar o 2018 que eu apanhei tanto. Me encontro em outra crise profissional, dessa vez por escolha, e não consigo deixar de traçar um paralelo com aquela época. O que sei é que, de um jeito que não sei explicar porque, a Itália é um país que parece remexer demais com meus objetivos profissionais a longo prazo. (Alô, astrocartografia, kkkk)
Ainda morro de dó daquela Debbie que lidou com tudo aquilo sozinha em Palermo, uma cidade que ela quase não fez amigos, numa época que ela sequer tinha dinheiro, cabeça ou saúde para cuidar de si mesma, sem pedir ajuda pra ninguém. Morro de orgulho da Debbie de hoje que continua tomando decisões muito difíceis em busca do que ela acredita que faz mais sentido para sua vida.
Enquanto meu trem cruza a fronteira para a Áustria, na direção da Alemanha, eu dei tchau para o céu azul que só devo ver depois do Natal. Me peguei refletindo sobre o quanto tudo mudou de 2018 pra cá. Eu sou outra pessoa, meus problemas são outros, e dessa vez eu saio daqui extremamente grata por esse país, com uma família nova para visitar de novo, uma língua nova aprendida, novas perspectivas, meu primeiro osso quebrado e uma tremenda vontade de ficar.
Sigo fascinada em como todas as nossas verdades absolutas mudam ao longo do tempo.
(Há boatos que essa vontade também esteja ligada ao fato que Berlim está 18 graus a menos do que em Napoli, onde acordei hoje de manhã, mas é difícil dizer com certeza absoluta)
Que texto linda, quantas memórias e histórias incríveis, amiga! Quero Parte 2 do texto à parte prometido. Eu estou aqui desde 2018 (antes até hahah) e também tenho orgulho dessas debbies todas ❤️
Que delicia de texto!