Em Berlim é comum você estar andando na rua e do nada se deparar com móveis, roupas, sapatos, coisas de cozinha, tudo apoiado no canto da calçada esperando um novo dono.
Já achei pratos, jaqueta de couro, travessa de forno, livros, mesinhas de canto, chapéu de palha e tive até uma poltrona horrenda que encontrei no dia do meu aniversário que eu trouxe pra cima porque não tinha lugar suficiente para as pessoas sentarem.
Não (só) porque é mais fácil do que chamar o caminhão do entulho, mas também porque muitas ainda podem serem úteis para alguém. Sei que no Brasil isso seria impensável (e tô vendo sua carinha de horror daqui) mas o norte da Europa é cheio dessas.
Então, no dia que eu achei um quadro em branco enorme aqui na frente do meu prédio, isso não me pareceu, assim, um grande sinal divino dos deuses.
Eu trouxe pra casa porque não se desperdiça uma possibilidade de ter algo emoldurado dentro de casa, já que moldura é cara, mas não sabia exatamente o que fazer com ele.
Quer dizer, eu meio que sabia.
Passei meses com a moldura acumulando pó no meu quarto e eu com a promessa silenciosa que eu ia pintar alguma coisa ali. Pintar alguma coisa foi mesmo dessa forma bem ampla, já que eu não pintav alguma coisa fora de um caderno há pelo menos uns cinco anos. Numa sexta feira chuvosa, como todos os dias nos últimos dias nesse país gelado, eu coloquei a coleira na Lisa e, ao invés de ir para o parque, fui pegar o metrô.
De pé no U8 joguei no Google “materiais para pintar com tinta acrílica”. Pincéis preferencialmente sintéticos, algo para misturar a tinta, papel mais grossinho ou tela, talvez rolinhos de pintura ou espátula dependendo da textura que eu quisesse (mas que textura eu queria?). Tinha na minha cabeça que acrílico seria uma boa ideia porque eu já pintei muito com tinta a óleo e aquarela e o tempo esperando elas secarem é infinito e até lá eu já desisti.
Papelarias tem um espaço cativo no meu coração, e a Modulor é possivelmente o lugar que mais me faz feliz em Berlim todinho. Cheguei lá fazendo o meu plano favorito: caminhar pelas prateleiras de todos os andares vendo todas as opções que eles oferecem. Pastas e caixas para organizar documentos, ítens fofinhos de scrapbooking, canetas, cadernos, tesouras, borrachas, livros de arte, papéis de dobradura. Aí você vai se embrenhando mais lá dentro e as drogas vão ficando mais pesadas: tintas a óleo, pincéis, molduras, materiais de crochet, gouache, faquinhas para fazer cadernos, tecidos variados de todos os tamanhos, tinta acrílica. Como profissional qualificada que sou, escolhi a tinta que tinha a embalagem mais legal.
Eu amo as possibilidades infinitas que existem em materiais de arte, e desde criança sou fascinada por todos eles. Só que, de certa forma, essas infinitas possibilidades nunca pareceram que estavam disponíveis pra mim.
Saí da papelaria com duas tinta, três pincéis, três folhas 100% algodão de 100x70cm e um sonho.
A real é que a sensação de que tudo que gostamos de fazer precisa ser feito de forma perfeita, se saindo melhor do que de todo mundo, e de preferencia com estratégia de monetização não existe só por causa das redes sociais. Nosso tempo sempre foi escasso, e “tempo é dinheiro”. Mas se a gente já entendeu que sair com amigos, descansar ou ver uma série são coisas importantes para a nossa felicidade, porque é tão difícil dedicar tempo a um hobby que talvez a gente nem seja tão bom assim, mas que nos faz muito feliz?
Passei a noite do meu sábado como se tivesse cinco anos de idade, imersa em um monte de coisas novas e muito feliz. Fiquei tentando silenciar o medinho de estragar todas as folhas pensando que eu só queria me divertir. Me divertir. Isso não é uma competição. Criei um negocinho que me deixou muito feliz, depois dois, depois três. Nem sei se ficaram bons, mas quem se importa? Não senti o tempo passar e nem sei quanto tempo efetivamente passou. Fiquei horas ali, imersa numa coisa que eu amo fazer mas raramente faço e, como sempre, “isso é MUITO legal, por quê eu não faço mais vezes?”.
Emoldurei o meu favorito e pendurei o quadro na frente da porta do meu quarto. Meu objetivo mesmo é que ele me lembre que eu posso fazer algo simplesmente porque me faz feliz, e tudo bem se eu for meio ruim, porque a gente não precisa ser excepcional em tudo que nos propomos a fazer.
Tem coisas que cumprem o papel de te fazer feliz, e só isso já deveria ser mais do que suficiente. Ser bom ou ruim nelas é insignificante.
Outro dia li a pergunta “quantos anos você tem fazendo a arte que você faz?” e, com tinta acrílica, eu devo ser um bebê engatinhando. Talvez uns 5 dias de vida no total, com sorte. Deixa ela brincar em paz.
Eu não tenho a pretensão de ser a melhor artista do mundo, mas a alegria de usar os materiais que eu sempre vi tanta possibilidade já deveria ser motivo suficiente. Me permitir deixar explorar coisas novas, me divertir, errar e errar de novo sem pressão, testar coisas diferentes, tudo isso é mais importante do que a qualidade do que vai sair daquilo.
Estou vindo aqui muito feliz te contar que estou sendo ruim em alguma coisa, e está sendo ótimo.
Só queria te lembrar que “te fazer feliz” já é razão suficiente.
E você, quantos anos você tem criando a arte que você cria? Não tem nada que me motiva mais a continuar escrevendo aqui do que ler os comentários de vocês. Se você gostou desse texto, me conta um pouquinho de você aqui embaixo! <3
Eu já escrevi sobre materiais de arte antes em vários lugares, mas lembrei especificamente desse texto sobre uma papelaria em Palermo, na Itália. Anos depois escrevi de novo sobre esse mesmo lugar, em uma coincidência inacreditável, mas que foi enviada só por email para assinantes da Linha naquela época (vou trazer repaginado pra cá também em breve!).
Um beijo e até semana que vem,
Debbie
Adiei por anos a vontade (que guardei como um segredo até de amigos muito próximos) de fazer aula de canto pq eu sabia que seria muito difícil persistir se eu me descobrisse muito ruim nessa arte... Mesmo que a minha intenção não fosse cantar em público, eu sabia que seria desafiador me permitir ser mais ou menos.
Na primeira vez que cantei na presença de alguém (a professora, uma jovem de 20 e pouquinhos anos, fofinha demais e teoricamente nada intimidadora), eu chorei do nada, de vergonha, no meio da música. Sabia que eram as vozes internas julgando cada nota não alcançada.
Agora faz 9 meses que estou persistindo e sou uma bebê que já fica em pé mas ainda não sai do lugar - mas uma bebê muito feliz :)
É muito gostoso ler algo q ta tao em sintonia com nossa cabeça, quase brindei com meu telefone ahahahhaha