Olá, liner!
Em um certo momento da história um artista coreano notou que, por causa da tecnologia, as habilidades de um artista tinham se tornado inúteis. O por a mão na massa, criar algo novo à partir de um material tinha se tornado insignificante porque uma máquina agora poderia fazer tudo isso digitalmente, o que naquela época ‘acabou com a arte’.
Já ouviu essa história antes?
No Japão de 1960, Lee Ufan tava cansado do que as máquinas poderiam fazer e refletiu sobre o papel do artista naquele momento. Focando suas criações num movimento novo, meio rebelde, ele começou a fazer uma curadoria de objetos pensando em como eles interagem entre si. Na categoria “materiais diferentes” ele também incluia o vazio. O nada.
O espaço em branco, vazio, e como os objetos posicionados ali interagem com aquele vazio.
Pense em uma sala em branco com uma pedra de uns 40cm de altura no canto direito. Ela parece meio encolhida, meio envergonhada, quase de castigo, mas é só uma pedra num canto da sala. A interação não é entre você e a pedra, ou entre você e o vazio, é entre a pedra e o vazio. Você só assiste. A interação entre as duas coisas faz você sentir… coisas. Mas não é sobre você, é sobre eles.
O Lee pensou em formas que o vazio interage com certos objetos, com certas marcas de tinta, com certos materiais naturais. Ao invés de interagir com quem estava olhando para a arte, ou com o artista, os objetos interagem entre si. Tira a gente do protagonismo. Uma coisa bem Japão putasso com os Estados Unidos.
Agora pense numa pedra enorme sentada numa almofadinha do seu sofá. Agora pense em 10 pedras sentadas em almofadinhas, em um círculo.
Você vai pensar “ai, modernismo, k k k”, mas o Lee Ha diz que odeia modernismo. Acha que modernismo é só masturbação de ego de artista (risos). O Lee não gosta de se impor como um ‘criador'. O que ele gosta de criar é uma reflexão entre os espaços, as formas e objetos, uma forma de relacionamento que só existe porque os dois existem (até mesmo o vazio). Vide a pedra sentada em grupinho meditando numa almofadinha - eu juro, elas estão tão entretidas entre si que dá até vergonha de entrar na sala e ir até o meio do círculo.
Em 1960 tivemos uma briga entre arte e tecnologia que se repete em loop de novo e de novo, a cada oportunidade nova que aparece.
A revolução industrial matou a criação no século 18. A fotografia matou a pintura no século 19. O cinema matou o teatro no século 19. A máquina de escrever matou a escrita no século 19. O computador matou o artista por inteiro no século 21. O Photoshop, então, matou o designer. O Paint matou o caderninho de desenhos de criança. O tablet matou por completo a ilustração em 2010. Tem morte demais na arte. Mas sabe o que fica de tudo isso? Tudo isso - e mais.
A gente tem o costume de colocar o artista numa posição de sensível, frágil, difícil de lidar, quase quebrável. Um chato extremamente romantizado, basicamente.
Só que o artista, o abstrato ali mesmo, tanto o artista que a mãe pagou a faculdade na FAAP até o artista que cria desde criança para ajudar com as despesas da quebrada da família na favela, a artista que cria canecas de cerâmica e o escritor de peça publicitária na Faria Lima, o artista permanece.
Não porque o artista é resiliente. Mas porque arte é resiliente.
Arte é que nem musgo que cresce entre as frestas quebradas do chão de cimento. É aquela florzinha amarela que cresce no asfalto de São Paulo que você se pergunta como caralhos está existindo ali quando você mal consegue respirar. A arte aparece nos textos de terça numa newsletter qualquer na internet, aparece no rabisco original antes de virar trecho de propaganda de TV, na história de ninar que a mãe conta para a criança dormir numa noite qualquer.
A arte em si nunca vai desaparecer, por mais que cimentem tudo ao nosso redor, porque não existe ser humano sem percepção humana. A interação entre uma coisa e outra, a criação, tudo é uma percepção humana.
Talvez o Lee Ha me processe, mas apesar da interação entre os materiais, a reflexão do porque uma pedra parece agressiva ou delicada ou violenta quando, na verdade, ela é só uma pedra, é uma percepção humana. Talvez seja exatamente o que ela queira dizer. A ideia que ele mesmo propõe é baseada exclusivamente em uma percepção humana. E a interação entre ela e outros objetos, naturais ou não, cheios ou vazios, é uma sensação humana.
O protagonismo da arte em si é humano, porque arte é algo que nos toca, evoca um sentimento, muito mais do que um formato criado pelo computador ou pelo tilelê sentado na areia da praia fazendo pulseira de miçanga.
O computador até pode criar artes realmente tocantes, como essa primeira feita com Inteligência Artificial a estar exposta no MoMA em Nova York, ou questionáveis como essa capa que ganhou o prêmio Jabuti de melhor ilustração do ano (o que, por si só, já faz todo sentido do mundo ter saído de inteligência artificial, já que estamos no ano da IA). Mas o protagonismo humano da arte continua vindo de como interpretamos cada uma delas.
Como você vai fazer dinheiro sendo artista, aí já é outra questão. Mas essa discussão não é de hoje e, efetivamente, nada mudou. Meia dúzia de artistas vão continuar ganhando muito bem para quebrar um espelho com uma pedra enquanto milhões e milhões de pessoas não conseguem viver de arte nem que se esforcem a vida toda e sejam muito bons. Mas você já era pobre antes da inteligência artificial, né?
O que vi, li e vivi e nessa semana:
Vi: a exposição do Lee Ha, que me fez escrever esse texto, outro dia numa galeria de arte dentro de uma antiga estação de trem aqui em Berlim. O movimento que ele criou é conhecido como ‘mono-ha’ ou ‘escola de objetos’. Dá pra ver o vídeo sobre a exposição (e ela quase toda) aqui - em inglês e alemão.
Li: nesse ano estou batendo recorde de livros que li em um ano. Graças a um aplicativo chamado Libby, que você consegue colocar carteirinhas de bibliotecas lá dentro e pegar livros e audiobooks de graça, eu tenho ouvido livros sem parar enquanto faço outras coisas da vida (aqui o segredo é ser safo e procurar no reddit as bibliotecas que te permitem fazer carteirinha 100% online). Aqui em Berlim também tenho o costume de ir até uma livraria no centro da cidade que vende livros em inglês, e foi lá que eu comprei, em papel mesmo igual os neardentais faziam, o livro Amanhã, Amanhã e ainda outro Amanhã. É um best seller famosíssimo, mas estou me sentindo órfã desde que terminei de lê-lo há meses. Foi meu livro favorito do ano até agora.
Vivi: Mês passado lancei uma newsletter nova para falar de trabalho. Sexy, né? É menor-pior do que parece: eu decidi voltar a falar sobre ser freelancer sob o nome de um finado projeto que eu tive, chamado Passaporte Freela. Depois de dez anos trabalhando como autônoma, eu ainda fico muito frustrada com esse mercado no Brasil e como ele ainda é precarizado. Já faz uma década que sou autônoma, e eu acho que as pessoas realmente não sabem enxergar o potencial libertador que ser autônomo pode te dar. Nem (só) profissionalmente, mas a liberdade de viver nos seus próprios termos mesmo. Se você alemeja ou já é autônomo, te convido a assinar também:
Beijos e até semana que vem,
Debbie
Dei aquele risinho de lado várias vezes enquanto lia!
que newsletter bonita. li ao som de my love mine all mine da mitski e bateu um aconchego -- apesar do desespero. (e já me inscrevi na news profissional). <3